terça-feira, 1 de outubro de 2013

Jacareacanga: sob intimidação de guerreiros munduruku, Ibama promove audiência pública da UH de São Manoel


As jornalistas do Latin America Bureau (LAB), Sue Branford e Nayana Fernandez, chegaram à cidade de Santarém no dia 5 de setembro. Estão passando um mês viajando pela região para conhecer os impactos de “grandes projetos de desenvolvimento” sobre comunidades locais. Neste fim de semana, elas estiveram em Jacareacanga acompanhando uma audiência pública promovida pelo Ibama para o licenciamento da hidrelétrica de São Manoel, prevista para o rio Teles Pires, na divisa entre os estados de Mato Grosso e Pará. É mais uma obra polêmica do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) do governo federal que enfrenta forte resistência indígena. A audiência só ocorreu após a suspensão de uma decisão judicial pleiteada pelo Ministério Público Federal que impedia a realização da evento até a conclusão dos estudos de impacto sobre os indígenas e após intimidação de guerreiros Munduruku que protestavam no local.

Como mostra o relato abaixo, as consequências dessa política adotada pelo governo para as hidrelétricas da bacia Tapajós-Teles Pires não são de todo imprevisíveis: o tratamento dispensado às populações amazônicas pelos governos Lula e Dilma desde Jirau e Santo Antônio, passando por Belo Monte, é em tudo idêntico ao que a ditadura militar fez para implantar as barragens de Balbina e Tucuruí. O imprevisível é que tipo de conflito pode ser provocado pela divisão entre os Munduruku, uma nação de mais de 10 mil indígenas.


O texto a seguir foi enviado por Sue Branford com exclusividade para o blog Língua Ferina. As fotografias são de Nayana Fernadez, também gentilmente cedidas ao blog.

Jacareacanga, 30 de setembro de 2013.

Por Sue Branford

Neste domingo, 29, foi realizada no município de Jacareacanga, sudoeste do Pará, a segunda audiência pública sobre a hidrelétrica São Manoel. A usina é uma das quatro projetadas no rio Teles Pires, um dos principais afluentes do Tapajós, e deverá afetar diretamente os territórios indígenas da região.

Porém, nem tudo transcorreu com a tranquilidade esperada pelo governo. Um grupo de índios Munduruku, pintados para guerra, conseguiu barrar por mais de uma hora a entrada do público e dos funcionários do governo federal no ginásio esportivo onde ia ser realizada a audiência pública. Os índios – homens, mulheres e crianças – protestavam energicamente contra a realização da audiência, mesmo ante uma ostensiva presença da polícia militar no ginásio – e um contingente ainda maior na retaguarda.

A grande maioria dos índios falava em Munduruku, mas, pelo número de vezes que eles mencionavam, em português, o “Ministério Público Federal”, dava a entender que sua recusa em participar da audiência tinha relação com a avaliação do MPF, que no dia 23 de setembro havia pedido a suspensão urgente da audiência até a finalização do estudo de avaliação de impactos da obra sobre os povos indígenas, chamada de estudo do componente indígena. 

E, de fato, a audiência pública havia sido cancelada por decisão da Justiça Federal poucos dias antes do evento em função de graves problemas referentes aos estudos de impacto da obra sobre os indígenas e a não conclusão do estudo do componente indígena. Citando pareceres da Funai, o MPF havia apontado muitas falhas nos estudos realizados, inclusive nas ações integradas em proteção territorial, proteção aos índios isolados, proteção à saúde e monitoramento participativo da qualidade da água, da fauna e das espécies de peixes. “Apenas essa constatação já seria suficiente para demonstrar que não se pode chegar às audiências públicas sem que estes programas estejam em debate, sob pena de se tornarem inócuas”, alertaram os procuradores da República Felipe Bogado e Manoel Antônio Gonçalves da Silva, que atuam em Mato Grosso, e Felício Pontes Jr., que atua no Pará. Para o MPF, essa irregularidade tornava-se ainda mais grave por se tratar de um processo de licenciamento que, segundo palavras da própria Funai, é marcado “por conflitos e tensões, e alguns confrontos diretos” e em que o estudo do componente indígena está sendo feito de qualquer maneira, “apenas para cumprir tabela”.

Porém, a audiência foi realizada graças à intervenção da Advocacia Geral da União junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que reverteu a decisão judicial no último momento.

A grande maioria dos índios com os quais conversamos, na manhã do último domingo, nas ruas de Jacareacanga, sentem, de fato, que as hidrelétricas, não só a de São Manoel, mas também todas as muitas outras planejadas para a região, estão sendo impostas de forma implacável, sem levar em conta o enorme risco à cultura e à própria sobrevivência indígena.

Os Munduruku estão vendo acontecer no licenciamento das hidrelétricas do Tapajós e do Teles Pires as mesmas irregularidades e graves violações de direitos que fizeram de Belo Monte um dos projetos mais controversos do governo brasileiro. Em Belo Monte, assim como ontem em Jacareacanga, as audiências aconteceram graças à ajuda providencial e rápida do habitualmente lento Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Em Belo Monte, como ontem em Jacareacanga, as audiências públicas foram marcadas por intensa presença policial e nenhum estímulo à participação. E os indígenas têm fortes razões para acreditar que, assim como em Belo Monte, o governo federal vai tentar usar audiências públicas como a de Jacareacanga para dizer ao poder Judiciário e à sociedade que fez a consulta prévia indígena que é obrigatória segundo a Convenção 169 da OIT.

Contudo, os índios Munduruku não estão unidos. Na manhã de ontem assistimos uma longa discussão (em Munduruku) de lideranças indígenas na praça central da cidade. Segundo as informações que obtivemos, os índios estavam tentando, sem êxito, chegar a um consenso sobre a posição a adotar em relação à audiência pública. Segundo lideranças indígenas, no processo de sufocar a resistência dos Munduruku, o governo brasileiro está deliberadamente criando divisões internas entre eles, transformando parentes em inimigos.


Depois de mais de uma hora de manifestação, chegou à entrada do ginásio um grupo de índios liderados pelo vice-prefeito da cidade (que também é indígena), acompanhado de quatro diretores do Pusuru, a mais importante organização Munduruku, atualmente controlada por índios urbanos ligados à prefeitura de Jacareacanga, cujo prefeito é hoje Raulien Queiroz, filiado ao PT. Depois de uma curta conversa, o vice-prefeito e os líderes da Pusuru avançaram aos empurrões e conseguiram romper o cinturão que os índios haviam montado. Eles – e logo depois o público, inclusive vários Munduruku que os seguiam, entraram no ginásio.

Logo depois começou a audiência. Sobre um palco, dez homens brancos. À sua frente, as três primeiras filas repletas de homens da cidade – pareciam comerciantes, fazendeiros, funcionários públicos, uma e outra mulher. E, cada vez mais distante do palco, os habitantes mais humildes da cidade e os índios Munduruku. O evento começou com o hino nacional. Todos se levantaram, mas só cantaram os visitantes no palco e a plateia das três primeiras filas. Os índios ficaram calados, de boca fechada.

A linguagem das apresentações era bastante técnica. Na verdade, acontecia um show, uma jogada de “marketing estatal” para vender a hidrelétrica à plateia. Servia-se água gelada e um pequeno lanche de doces. Ninguém, em nenhum momento, questionou se, de fato, a hidrelétrica traria mais problemas do que benefícios para o município de Jacareacanga. Que a hidrelétrica é sinônimo de progresso para a região era tido como coisa certa. As perguntas – e para fazer uma pergunta havia que se inscrever e apresentar a questão por escrito – pediam esclarecimentos ou, vez ou outra, questionavam sobre as cifras que o município receberia em assistência financeira para enfrentar possíveis transtornos. Do que ouvi – e sai pouco antes de terminar – houve uma única indagação indígena, aliás, vinda de um índio conhecido por ser ”barrageiro”, como são chamados aqueles que apoiam a instalação das hidrelétricas.

Segundo lideranças da resistência indígena, eles cederam e liberaram a entrada do ginásio para evitar um grave conflito entre seu próprio povo.

Os visitantes chegaram de avião pouco antes do horário marcado para a audiência e certamente partirão na manhã seguinte. Uma audiência pública? Talvez. Mas muito longe de uma verdadeira consulta popular e participativa, como lhes garante a lei.


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